A insustentável leveza do «h»
O que quer que seja que estejamos a aprender, é-nos dito para entender a lógica, essa
espécie de magia que torna tudo mais simples. Essa palavra-chave que encadeia, ordena
e torna racional o que for, para que assim se possa assimilar.
Há uma certa ordem no modo de ser das coisas, gatinhamos antes de sermos capazes de
andar, aprendemos as vogais e os ditongos antes de começarmos a ler.
Há um «sentido» que afasta o caos e impede a anarquia; uma razão que explica e nos
faz perceber.
Tinha isto como inabalável ate ser posta a prova por uma criança que me confrontou,
cheia de entusiasmo, com a sua perplexidade: Porque é que existe o «h», no início de
certas palavras? Para que?!
Já me tinha visto envolvida em batalhas do género. Acompanhar a difícil jornada de
começar a ler, implica entrarmos num terreno algo pantanoso de desafios pertinentes.
Obriga a pôr de parte a arrogância adulta, para fazer frente a questões, como: porque é
que o «o» ás vezes faz de «u».
No fundo com o olhar ávido e brilhante de quem quer entender, perguntava-me, porque
é que não fazem as coisas mais simples, com mais lógica?
A crítica e a ousadia que subentendia, não tinha por alvo nada em concreto. Apenas uma
curiosidade: Para quê o «h»?
Nunca fui «boa» a português, mas conseguia de certa forma ludibriar e justificar
algumas regras básicas, mas nem por isso simples, da nossa língua. Muitas vezes
socorri-me da gramática, inúmeras da minha imaginação que criou a história do «Reino
das Letras».
Desta vez fui apanhada de surpresa! Caramba?! O «h» não serve para nada. No limite,
para sustentar a produção de erros ortográficos ou transtornar qualquer estrangeiro que
se lance na odisseia de querer dominar o nosso português. O «h», ordena o cérebro a ir
ao ginásio combater a preguiça da memória, pois que outra forma há de sabermos que
têm h, senão tivermos decoradas as tais palavras?
Espantou-me a magnificência da questão: Porque ou para quê esse género de «hs»?
Apeteceu-me responder de imediato: Oh Não serve para nada! Em vez disso falei
(tentando ter alguma graça) – por isso lhe chamam h mudo.
Foi pior. O seu ar estupefacto a olhar para mim. Não disse, mas sei que pensou: Mas as
letras servem para fazer som…
Continuei com a minha explicação, desviando – que arte têm os adultos nesta matéria –
para algo que a minha criatividade sugeria poder-me ajudar. O «h» serve para o «che»,
o «lhe», o «nhe»…Segui a retórica que já confessei ter usado, sobre as personagens do
reino das letras. Tal como o «q» é o melhor amigo do «u» e anda sempre com ele,
também o «h», ajuda o «c», o «l» e o «n» a terem uma vida mais plena e preenchida.
Mais uma vez os seus olhos cruzaram os meus, e apesar de acenar como quem
concorda, o seu ar desconfiado, era evidente. Afinal não lhe tinha respondido à questão.
Não era sobre esse «h», que queria saber, (esse de certa forma tinha uma utilidade e
fazia sentido) era sobre o outro! Mas o «Mirmo» ia começar no canal Panda e os TPC
estavam feitos, por isso, fez o que faz frequentemente quando não se contenta com a
resposta, adia a ofensiva da inquisição para uma altura que considere mais conveniente.
(é certo que as crianças nunca desistem)
By Catarina Aragão
Fiquei a pensar. Que esperto... E sim, caramba! Para quê esse «h»?!
Porque o aceitamos tão facilmente, porque não o questionamos quando nos ensinam, ou
se o fizemos (e duvido porque não vejo muitas crianças a deterem-se em tal
problemática), porque esquecemos esse brio de consternação?!
Enquanto reflectia na perspicácia do meu filho, lembrei-me dos inúmeros «hs» da nossa
vida. Da minha principalmente.
Do que não faz sentido, mas é.
Do que não notamos mas está lá. Do supérfluo que interiorizamos como prioritário. Do
escusado que transformamos em imprescindível….os «hs» pesados, que nos tocam sem
dó nem piedade.
O «h» chato que temos que aturar, o «h» triste do desgosto de amor, o odioso «h» da
doença, o terrível «h» do sofrimento, o «h» injusto, o «h» que com brutalidade nos leva
alguém querido. O misterioso «h» da fragilidade da vida, que nos transforma com o seu
silencio ensurdecedor.
O «h» avassalador que não compreendemos e somos obrigados a admitir. O «h» que
não queremos e acontece, o que desilude, baralha, magoa.
Os «h´s» mudos, e os outros. Aqueles que com alguma esperança e muito custo,
conseguimos que tenham alguma utilidade… que nos tornem mais fortes e melhores.
«Hs» que nos são impostos, e que simplesmente existem.
Sorri, o «h» do principio das palavras não é de todo importante, principalmente quando
comparado com estes. Talvez, no limite este «h gramatical» sirva para aprendermos a
lidar com os restantes.
Quis dizer-lhe: - Sabes, não é para perceber, é para aceitar.
Mas achei duro de mais para os seus ingénuos 6 aninhos, e quis preserva-lo, ele ia ter
que se conformar na mesma. Era o seu primeiro «h».
Fui dormir, e agradeci a Deus pela voz critica e atenta do meu filho. Pela sua forma
extraordinária de ver o Mundo. Pedi que o conservasse assim: Puro. Capaz de ver os
«hs». Corajoso para reclamar os obsoletos e sereno para acatar os que nos fazem
crescer.
Disse baixinho, quase para mim mesma, esse «h de início das palavras», é levezinho e
sim, não se justifica.
Ainda bem que reparaste meu adorado filho….
In Meu Mundo de Mãe
By Catarina Aragão
2 comentários:
Bom dia meus queridos!
Que maravilha de “prosa”…. OBRIGADA por partilhares! Adorei! A mim, fez-me pensar nos tantos “h’s” que surgem minha vida, e os tantos que por vezes ainda teimo em questionar.. mas para quê? O melhor mesmo que há a fazer é simplesmente aceitá-los como são…. simplesmente… porque sim…
Valeu! ;)
É tudo uma questão de aceitar mas...não podemos deixar de questionar.
Muito bom Pu, obrigada por partilhares maravilhosa prosa da Catarina e do iluminado filho.
Sppam
Enviar um comentário